Todos que iniciam o estudo mais aprofundado de uma disciplina artística, seja o desenho, a pintura, a escultura, a música, a literatura ou que mais vier na sua cabeça, sabe que normalmente - salvo se você for um Caravaggio ou um Van Gogh encarnado - alcançar um determinado grau de desenvolvimento técnico só é possível às custas de muito suor, lágrimas e sangue. Parece exagero, mas esses três pontos são os componentes básicos para o que podemos chamar de sacrifício.
Goya representado no filme Os Fantasmas de Goya (2006), do diretor Milos Forman, com seu chapéu candelabro a assombrar as trevas da noite enquanto exerce seu ofício.
Os sacrifícios diários são necessários para a concretização de algo que vai além da nossa tendência à inércia. Para os incautos, o caminho pode parecer glamoroso, mas o tempo de estrada mostrará uma quantidade muito maior de altos e baixos e pedras no caminho do que se imagina a princípio. Sem contar os animais selvagens, tempestades, sol escaldante, a sede durante a andança... Analogias à parte, talvez uma das coisas mais difíceis para alguns que estão dando os primeiros passos dentro do estudo do desenho ou da pintura - falo especificamente dessas áreas pois são aquelas nas quais tenho experiência - seja o fato de que o querer não serve para absolutamente nada. Me refiro aqui àquele querer autodeclarado e entoado de forma pomposa aos quatro ventos; o querer que mais se assemelha a uma empolgação momentânea que carece de maiores propósitos.
Não adianta. Você pode ter os melhores materiais artísticos à sua disposição, pode possuir equipamento eletrônico de última geração e pode estar matriculado na melhor escola de artes, com os melhores professores do mundo: se você não colocar a mão na massa DIARIAMENTE você não vai sair do lugar. Sem PRÁTICA, PERSISTÊNCIA e PACIÊNCIA, você só colherá frustrações. O que se pode fazer? É como a coisa funciona. Paremos de nos iludir e de ficar dando desculpas. A realidade é essa. Ponto.
Isso assusta. Talvez um dos culpados por termos um conceito invertido a respeito do esforço para se conquistar algo, seja a estrutura que nossa cultura alcançou nos dias atuais. Enveredar-se no estudo de uma disciplina artística é uma tarefa ingrata do ponto de vista imediatista e descartável da vida contemporânea que levamos. Na visão de alguns pode parecer loucura. Resultados que demoram a surgir e que demandam um esforço enorme no processo: não é algo totalmente contraditório se levarmos em consideração a forma que vivemos no dia a dia? Onde tantas coisas chegam prontas em nossas mãos? Como diria o personagem Paulo Oliveira em um dos episódios do programa Larica Total, “O consumidor é um mimado”. Não existe uma loja onde possamos apontar o dedo e dizer “Quero este pote de talento” ou “Embrulha esse pacote de ‘eu desenho bem’ pra mim, por favor”. Felizmente!
Uma observação se faz necessária a essa altura. Quando falo desse aspecto exigente das artes me refiro àqueles que buscam um grau de domínio técnico mais apurado, mesmo que o artista não seja necessariamente um mimetista. Falo daqueles que levam a técnica mais a sério e a enxergam como uma ferramenta de expressão em seu trabalho. Pescou? Então vamos prosseguir.
Comentei sobre o talento logo acima e talvez não seja difícil fazer um link com a inspiração e colocar ambos lado a lado com essa ideia do trabalho braçal que as artes demandam. E aqui há uma analogia numérica que facilitará nossa vida: fica claro como um dia de sol às 12h, perceber que estamos falando daqueles 99% de transpiração apregoado pelo tio Edson (sim, aquele senhor da lâmpada). Sobra aquele famigerado 1%. Sim, a tal inspiração... Ok, ela existe, é claro. Mas até nesse ponto talvez o leigo não compreenda exatamente como ela funciona. Não podemos esperar que a inspiração seja nossa deusa salvadora e que estará sempre presente para suprir nossas carências técnicas por sermos preguiçosos quanto à prática de nosso ofício. Não pense você que só a inspiração vai salvar seu couro. Claro, eu sei que existem exceções... Pode até ser, mas aqui não nos interessa as exceções, importa é que falemos sobre aquilo que nós, mortais, passamos na pele para alcançar nossos intentos.
E desconfio que toda essa dificuldade que enfrentamos, no fim das contas tenha muito a ver com a nossa baixa capacidade de entrega. Mas aquela ideia de entrega mesmo, sem colocar tanta expectativa nos resultados. A entrega quase desinteressada. Principalmente no começo, quando nossos trabalhos são ainda um tanto amadores e parece haver uma estranha proporção em jogo: a qualidade é inversamente proporcional ao nível de expectativa. Aqui temos algo que vai além apenas da questão de se manter uma constância. Sabe qual é o problema? É que as artes não perdoam, elas exigem o máximo de quem se envolve com elas, exige a presença do ser em corpo, alma e mente. É a faceta da entrega dentro do fazer artístico que acaba assustando e desanimando muita gente. Talvez seja porque quando se inicia o processo de levar a arte a sério, ela retira aquela sujeira do espelho e te mostra quem você é, gradativamente. O que pode ser mais ameaçador do que se ver sem suas habituais máscaras e fantasias?
Pois é. Falar que quer desenhar bem não vai te fazer um artista melhor. Fazer aulas de pintura não vai te fazer um artista melhor. Empolgação rasa não vai te fazer um artista melhor. Deixar a preguiça de lado, se equipar com paciência, perseverança e auto-tolerância, mantendo a mente aberta e desenhando e pintando com constância, vai te fazer um artista melhor. A decisão de qual estrada pegar é sua.